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Convite à desconstrução da PEC 241

Se a PEC 241 fosse aplicada a uma família, significaria congelar a compra de livros do filho e os exames médicos da mãe para preservar a jogatina do pai
 
Vamos debater a PEC 241, aprovada em primeiro turno na segunda-feira 10 na Câmara dos Deputados. Mas, para fazê-lo, convidamos você a examinar conosco um documento de extrema importância, nunca debatido claramente pela velha mídia. Trata-se do Orçamento da República. Ele é uma espécie de radiografia das políticas públicas e das ações do Estado brasileiro.
Em uma democracia verdadeira, sua análise deveria ser matéria básica nas escolas de Ensino Médio. No entanto, ele é tratado ou como um segredo, ou como um saber hermético, acessível apenas para notórios especialistas. É o que está acontecendo neste exato momento
Aprovar a PEC 241 é o grande objetivo do governo Temer em 2016. Em alguns aspectos, este governo é mais frágil que às vezes pensamos. Ele já adiou para 2017 a tramitação do aumento da idade mínima para aposentadoria, a contra-reforma da Previdência. Ele não sabe ainda por que meios atacar os direitos trabalhistas e a CLT. Ele preferiu concentrar-se na PEC 241, por dois motivos.
Primeiro, tratar de um tema menos conhecido pela sociedade. Segundo, porque por trás desta proposta está embutida uma narrativa tenebrosa – e manipuladora – sobre a situação do País.

 
 

Fala-se que estamos quebrados. Argumenta-se que a causa do desastre foram as políticas praticadas a partir de 2003, quando houve uma pequena melhora nas condições de vida da maioria. Conclui-se que, para nos livrarmos do pior, será necessário um período de sacrifícios, no qual as políticas anteriores serão revertidas. Ao final, garante-se, o País estará saneado e novamente pronto para crescer e gerar empregos. Todos estes argumentos são falsos, como você verá, com base nos próprios números oficiais e num conjunto de gráficos e tabelas.
O argumento central do governo Temer e dos economistas conservadores que o apoiam é o aumento da dívida pública. “Um país é como uma família”, disse o ministro Henrique Meirelles, em cadeia nacional de TV: “Não pode gastar mais do que ganha”. De tanto viver acima de suas possibilidades, o Brasil estaria hoje muito endividado, a ponto de quebrar. Vamos examinar concretamente esta afirmação.
O gráfico a seguir mostra da evolução da dívida pública brasileira, nos dois últimos anos. Ela realmente cresceu, chegando hoje a 4,2 trilhões de reais. Este número, por si mesmo, diz pouco. A dívida é alta? É baixa? Para mensurar melhor seu significado, os economistas normalmente preferem um outro indicador: a relação entre a dívida e o PIB.
É, de fato, um dado melhor. Usando a analogia do ministro Meirelles, o que importa, para uma família ou um país, não é o valor absoluto da dívida, mas quanto ela representa em relação aos rendimentos do endividado.
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Segundo este critério mais relevante, verificamos que a dívida manteve-se praticamente estável, de 2006 a 2014. Ficava em torno dos 55% do PIB, com pequenas oscilações para cima ou para baixo. A piora começa no segundo mandato da presidente Dilma, em 2015. A dívida, que havia se mantido estável por oito anos, sobe para 68,8% do PIB menos de um ano e meio depois, quando a presidente foi derrubada. Com Temer, continuou crescendo: está hoje em 70,1% do PIB.
Significa que o País está quebrado? É duvidoso. Nosso segundo gráfico compara nossa dívida atual com o que ela representava no final do governo Fernando Henrique Cardoso: 81% do PIB, em setembro de 2017.
Comparemos também com outros países. Nos Estados Unidos, a dívida é de 101% do PIB. Na Itália, 132,7%. Na Zona do Euro, em seu conjunto, 90,7%. No Japão, 229,2%. Você ouviu falar que algum destes países – todos com dívidas muito maiores que a brasileira – está em situação catastrófica? Algum jornal ou TV já acusou o ex-presidente FHC de irresponsabilidade fiscal?
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Os reais interesses por trás do discurso do país quebrado vão começar a aparecer agora.

Qual a receita do governo Temer para reduzir a dívida brasileira? Cortar despesas sociais, como saúde, educação, transportes públicos, direitos previdenciários e em infra-estrutura: redes de esgoto, despoluição de rios, geração de energia, rodovias, ferrovias, portos, aeroportos.

A PEC 241 estabelece uma medida drástica, nunca antes adotada pelo País. Se ela for aprovada, estes gastos ficarão congelados por 20 anos. Poderão ser reajustados – se tanto – apenas segundo a inflação. Não importa se a população crescer, ou se futuros governos quiserem investir mais no social. Os cinco próximos presidentes da República estarão condenados a viver sob congelamento. O deputado Elvino Bohn Gass calculou, num outro vídeo didático: as perdas poderão ser de 703 bilhões de reais só em três áreas: saúde, educação e agricultura familiar.

Mas vamos checar se há lógica no argumento do governo, de que o corte de gastos sociais poderá reequilibrar as finanças públicas. Examinemos, primeiro, a evolução destes gastos.

O estudo mais completo a este respeito é, provavelmente, um trabalho da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda, elaborado por uma equipe de 11 especialistas e concluído este ano. Está disponível aqui.

O trabalho da secretaria do Tesouro Nacional classificou sete destinações do gasto social: Assistência Social, Educação e Cultura, Organização Agrária, Previdência Social, Saneamento Básico e Habitação, Saúde e Trabalho e Emprego. Analisou a evolução dos gastos em cada uma destas rubricas, entre 2002 e 2015. E concluiu que houve, de fato, elevação real.

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Veja no gráfico. Em conjunto, o gasto social da República avançou, no período, de 12,8% do PIB para 17,5% – um aumento de 4,7 pontos percentuais. Esta evolução reflete as políticas sociais dos governos Lula e Dilma. Criou-se o Bolsa Família. Houve aumento real do salário mínimo, que melhorou as aposentadorias e pensões. Foram criadas 18 universidades públicas. Centenas de milhares de famílias colocaram, pela primeira vez, um filho ou filha no ensino superior.

O SUS continuou a executar programas pioneiros, como a distribuição gratuita de medicamentos a todos os portadores de HIV, e a realizar as cirurgias e procedimentos complexos – inclusive transplantes – que os planos de saúde privados não fazem.

Tudo isso custa dinheiro e o Brasil está ainda muito distante de outros países. Na França, por exemplo, o equivalente ao Bolsa Família paga a cada pessoa ou família, por mês, entre 514 e 1079 euros – de 1850 reais a 3890 reais – a depender do número de filhos. Na maioria dos países europeus, e no Japão, o ensino da melhor qualidade é público e gratuito: os filhos dos pobres frequentam o mesmo tipo de escola dos filhos dos seus patrões.

Vamos comparar agora o gasto social – que será atingido pela PEC 241 – com outra despesa, não tocada pela proposta. Estamos falando do pagamento de juros, pela República.

Este gasto tem natureza diferente. Ele não coloca uma única carteira a mais, em sala de aula, ou um leito em hospital público. Não alivia o drama dos desempregados. Não ajuda o pequeno agricultor a alimentar os brasileiros. Não corrige o valor do Bolsa Família nem das aposentadorias. Não ergue uma ponte, não instala um cano de esgoto.

Ele se destina unicamente a engordar a riqueza de quem (menos de 1% da população) já tem tanto dinheiro que aplica o que sobra em papéis do governo – e ganha muito com isso.

Faça as contas, na ponta do lápis. Se a dívida pública chegou a 70,1% do PIB e se a taxa de juros paga pelo governo federal é de 14,25%, isso significa que pagamos à aristocracia financeira 10,11% do PIB. É mais do dobro de todo o aumento do gasto social (4,7% do PIB) ocorrido em 13 anos.

São 3,7 vezes o que investimos em educação e cultura, 50 vezes mais que os gastos em reforma agrária, 20 vezes mais que em saneamento, cinco vezes a saúde, oito vezes a promoção de trabalho e emprego.

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Num dos próximos programas do Outras Palavras, você verá que a analogia do ministro da Fazenda é simplória. As contas públicas de um país não podem ser comparadas às de uma família.

Mas, por enquanto, vamos aceitar o argumento de Henrique Meirelles. Se a PEC 241 fosse aplicada a uma família, significaria congelar a compra de livros, a reforma ou o puxadinho na casa, os exames médicos da mãe e a compra de ferramentas para a oficina mecânica que o filho está abrindo. Tudo isso, para preservar a jogatina do pai. Ou, na verdade, para preservar aqueles que ganham com a jogatina do pai.

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