Centro de Educação e Assessoramento Profissional

CARTA DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS POPULARES SOBRE EXPANSÃO DA UFFS-CAMPUS PASSO FUNDO

Lideranças de vários movimentos sociais, ONGs, entidades sindicais e pastorais sociais se reuniram no dia 20 de agosto de 2014 no Sindicato dos Metalúrgicos de Passo Fundo para discutir a proposta de expansão da Universidade Federal da Fronteira Sul-Campus Passo Fundo. Estas organizações respeitam a instância Conselho Comunitário da UFFS, da qual várias de nossas organizações participa, mas entendem que é fundamental alargar os espaços de diálogo. É por isso apresentam esta Carta que reúne reflexões e posicionamentos.
Os participantes fizeram uma retomada histórica da implantação da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) em geral e especificamente do Campus Passo Fundo. Reiteram a importância da política de ampliação das universidades públicas no país nos últimos anos como parte das políticas dos governos Lula/Dilma em atendimento às demandas da luta dos movimentos sociais. Eles foram determinantes para que fosse implantada uma federal na Região Norte do RS e no Oeste de SC. Os movimentos sociais que estiveram na origem da UFFS e que continuam dela participando, entendem que um dos principais desafios, no processo de implantação da UFFS é a continuidade do diálogo efetivo da Universidade com as demandas e necessidades da população. O sentido da universidade pública, além de ampliar o acesso da população à educação superior, está em responder às diversas demandas e necessidades da população. Articuladamente, ensino, pesquisa e extensão devem se completar numa dinâmica pedagógica que dialoga com os problemas e necessidades das pessoas, particularmente daquelas que mais precisam, na perspectiva dos interesses públicos, nunca para favorecer a qualquer setor ou segmento, particularmente daqueles mais bem aquinhoados na sociedade ou daqueles que somente querem enriquecer com a doença.
A expansão do Campus Passo Fundo, organizado para ser vocacionado na área da saúde, está centrada na possibilidade de ampliar a contribuição da UFFS na resposta às necessidades de saúde das pessoas e para contribuir com a realização de um dos direitos humanos reconhecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, o direito humano à saúde. Desta premissa, a missão primeira da formação a ser desenvolvida passa por contribuir com a implantação e qualificação do Sistema Único de Saúde (SUS), visto que este é o modelo constitucionalmente definido como sendo a mediação para a realização do direito humano à saúde no Brasil. Em outras palavras, entendemos que a UFFS se insere num esforço que o Brasil assume em sua Carta Magna, que é o de trilhar o caminho de efetivação do direito à saúde para todos/as pela efetivação do SUS. A universidade pública em geral, e em particular a UFFS, está chamada a concentrar todos os esforços e a se somar à responsabilidade de implementar e qualificar o SUS.
A implicação imediata desta responsabilidade passa: a) por contribuir para que a saúde seja entendida como um direito de cada uma das pessoas e não um mero serviço ou mesmo um negócio que é feito para render lucros para a apropriação privada; b) por colaborar para que o direito à saúde ganhe efetividade como “acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação”; c), mais do que “tratar doentes”, o desafio é centrar a atenção na qualidade de vida das pessoas, na promoção do autocuidado e de condições de vida que sejam promotoras da saúde. Em hipótese alguma o SUS pode se eximir do tratamento das diferentes patologias. Entretanto, perde o seu objetivo mais nobre quando se limita a isso.
Para cumprir seu compromisso com o SUS, a UFFS está chamada a olhar com atenção e cuidado para os condicionantes e determinantes da saúde da população brasileira e, em especial, na nossa região. Em que condições são produzidos os alimentos em nossa região? Como responder ao aumento vertiginoso do uso de agrotóxicos nas plantações de monocultura (soja especialmente)? Dada a comprovada relação dos agrotóxicos com diferentes patologias, entre as quais vários tipos de câncer, será suficiente formar bons oncologistas? Não faltam dados para mostrar a morte precoce dos nossos jovens, especialmente os mais pobres, a violência contra as mulheres, que alcança níveis assustadores, os acidentes de trânsito, que aumentam a cada dia. Como podemos contribuir com o enfrentamento da violência em Passo Fundo e região? Seria suficiente formarmos ótimos profissionais para realizarem cirurgias de alta complexidade? Como responder aos problemas causados pelas condições de trabalho da população? É característico da nossa região o esforço repetitivo dos agricultores familiares e dos operários que trabalham nas diferentes empresas de alimentação e outras, o que faz com que em algumas indústrias, o destino previsível de parcela significativa de trabalhadores seja a “invalidez” permanente, inclusive muito precoce, e em outras, a consequência previsível para uma grande parcela de trabalhadores é a depressão. Nestes casos, qual o papel da Universidade? Seria o de formar bons profissionais para tratar das consequências (previsíveis) das más condições de trabalho? Outro dado cada vez mais relevante para a saúde diz respeito ao perfil demográfico atual e futuro: a população envelhece em ritmo acelerado. Como desenvolvermos uma nova pedagogia, ou ainda, uma nova política de cuidado da população em geral e também da população idosa? É sabido que uma das maiores causas de morte das pessoas acima de setenta anos são as quedas: como formar pessoas que possam cuidá-las adequadamente para que se evite estes problemas? Enfim, para garantir o direito à saúde é suficiente o cuidado no espaço hospitalar? Diante destes dados, que dizem respeito às condições concretas de vida das pessoas, qual é o papel da universidade, especialmente da universidade pública, da UFFS, que é financiada com o dinheiro de todos/as os/as cidadãos/ãs, inclusive e especialmente daqueles/as que, por mais aberta que seja ao ingresso dos oriundos da escola pública, nunca passarão por suas portas? Como a sociedade pode contribuir para que o ensino, a pesquisa e a extensão estejam voltados a um conjunto de questões capazes de orientar a ação educativa na linha da afirmação de cidadãos e cidadãs, além de profissionais? A quem cabe dizer o que a que deve responder a Universidade? De quem deve ser o peso maior na definição? Não temos dúvida: do interesse público, daqueles e daquelas que esperam ver a UFFS como uma parceira para implementar a garantia do direito humano à saúde através da efetivação do SUS, nunca daqueles e daquelas que a querem ver como um recurso para ampliar sua acumulação de riqueza!
Para que o direito à saúde seja efetivo, o SUS prevê um conjunto de ações e serviços que devem estar acessíveis a todos e todas. Diante disso, é necessário um olhar mais amplo sobre a realidade loco-regional. Mesmo que não se possa perder de vista que a responsabilidade primeira de organização do SUS seja do Estado, a sociedade entende que a universidade tem um grande papel a cumprir no sentido de colaborar com a sua organização e qualificação. Nesse sentido, a primeira pergunta a ser feita é: como a nossa população está sendo atendida pelo SUS? A Estratégia da Saúde da Família atinge 100% do nosso território ou continuamos prestando um atendimento médico por “ficha”, cujo atendimento não dura mais do que cinco minutos, com cidadãos/ãs que estão na fila de madrugada, enfrentado temperaturas abaixo de zero? Tem esse problema alguma relação com a falta de cumprimento de horário e de contrato por parte dos profissionais da saúde? Quando falamos em atendimento pelo SUS, em particular o especializado, será que existe em Passo Fundo e região a prática da chamada “cobrança por fora” por parte dos profissionais? Será que há cidadãos e cidadãs que são encaminhados para atendimentos privados em nome da agilidade? Qual o papel da Universidade diante desse tipo de prática que atenta contra os princípios constitucionais previstos para o SUS? Como está o acesso e o uso dos medicamentos em nossa região? Os medicamentos necessários estão acessíveis a todos/as ou continua a prescrição de “marcas” de laboratórios não previstas na lista do SUS ao invés de tomar como referência o princípio ativo? Quando o cidadão precisa pagar pelo medicamento, qual o impacto no orçamento familiar da maioria assalariada da nossa população? Dados mostram alto nível de intoxicação de pessoas por medicamentos no Brasil, em Passo Fundo parece se repetir um quadro cada vez mais preocupante no país, em que já temos mais de cinquenta mil farmácias e apenas trinta e oito mil padarias. Esse aumento vertiginoso de farmácias e da venda de medicamentos é no mínimo contraditório para um país que deveria garantir o acesso universal e gratuito. O uso excessivo de medicamentos é sinônimo de saúde? Por que será que a política de uso de plantas medicinais e fitoterápicos não avança? Novamente, qual o papel da UFFS? Como ela pode fazer frente aos grandes laboratórios e a sua incidência colonizadora nas instituições, inclusive nas universidades públicas?
Para os movimentos sociais, outro tema da mais alta importância é o uso de exames de diagnóstico. A dificuldade de acesso a exames por boa parte da população, implicando que pague por eles ou pague a “diferença”, mesmo que seja pelo SUS [que subsidia o privado, não sendo o contrário, o privado complementar a ele], fica cada vez mais grave, visto ser cada vez mais difícil uma assistência que reduza seu uso. Estamos passando por uma transformação no modelo clínico no qual o atendimento se limita cada vez mais ao uso de exames e de medicamentos, seria esse um problema do/a cidadão/ã que estaria cada vez mais ávido pelo consumo de medicamentos e exames ou seria um modo de qualificar o atendimento ou seria um modo de engordar certos tipos de contas? Qual o papel da Universidade diante desse problema? Qual o modelo de saúde que a Universidade deve ajudar a construir desde os primeiros níveis de formação?
Ter em conta o modelo de saúde que a sociedade demanda e que transversaliza o SUS exige que seja feita a pergunta sobre outra questão cara a todos nós, que é a forma como as nossas crianças estão nascendo. Estamos assistindo a um número crescente de cesarianas, inaceitável se tomarmos como referência qualquer parâmetro nacional ou internacional. Muitas mães e pais são induzidas por um conjunto de dispositivos a adotar essa prática, sendo que, quando há a opção dos pais pelo “parto normal”, esse direito não é garantido pela indisponibilidade de tempo dos profissionais que optam por procedimentos rápidos. Onde está o problema? São os pais da criança ou os profissionais da saúde que optam por encurtar o processo do nascimento e alargar o número de procedimentos em seus consultórios? Que responsabilidade cabe à Universidade diante desse quadro?
Para os movimentos sociais, o debate da expansão da UFFS precisa olhar para esse contexto e tomar a sério a realidade que apresenta sérias necessidades e demandas, fazendo um profundo diagnóstico das necessidades da população para que possa estribar a ação na realidade a fim de que a saúde seja tida sempre e cada vez mais como um bem comum que, exatamente por ser assim, precisa ser preservado e por todos/as e promovido para todos/as, sempre com redobrada atenção àqueles e àquelas que mais precisam.
Além disso, o que deve balizar toda e qualquer decisão é o interesse público. O bem público que está sendo construído pela instalação da UFFS em Passo Fundo não pode ser apropriado privadamente, até porque se trata de um bem construído com financiamento público. Nada temos contra a iniciativa privada explorar serviços em saúde, mas se quiser fazê-lo, que o faça com seus próprios recursos e não se apropriando dos recursos públicos e comunitários. A lógica do bem público dá primazia ao interesse público, e somente a ele. Daí, todo interesse privado, se quiser conviver, que se submeta ao interesse público, não o inverso.
Enfim, entendemos que o princípio número um de quem se propõe a atuar para garantir a realização de um direito não pode ser ganhar dinheiro. Direitos não são serviços e nem negócios: nunca podem sê-lo. Por isso, se o Campus Passo Fundo da UFFS quer ser vocacionado para a saúde, o primeiro e mais alto de seus princípios é que fará a formação de pessoas que sejam AGENTES DA REALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS em geral – porque todos os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes – e do direito humano à saúde, em particular. Com isso, os movimentos sociais, as organizações e as pastorais não estamos mais do que apenas lembrando o que é compromisso constitucional ratificado pelo Brasil ao receber em seu ordenamento o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).
Desses pressupostos, dos quais os movimentos sociais não abrem mão, decorrem questões que estão postas à decisão concreta a ser tomada:
1) Quais são os cursos que melhor responderão às questões acima?
2) Considerando os cursos que vierem a ser implantados, qual deve ser o seu foco central e suas estratégias pedagógicas?
3) O que orientará a pesquisa, o ensino e a extensão e como serão implementadas?
Em atenção a estas questões, chegou-se a acumular os seguintes aspectos:
1) Proposta de cursos:
a. Entende-se que o essencial não deveria ser enquadrar-se na “cartela” de opções disponíveis e sim trabalhar na construção criativa de alternativas que melhor respondam às necessidades e aos desafios da saúde. Por isso sugere-se com insistência que a UFFS construa um processo de pesquisa e de reflexão sistemática capaz de fazer um profundo diagnóstico com a participação dos diversos agentes populares, de modo a fundamentar de forma consistente as alternativas para a expansão futura do Campus.
b. No que diz respeito à definição imediata, considerando a metodologia e o cronograma em curso, sugere-se como necessária a implantação de um curso de SAÚDE COLETIVA. Olhando para o cenário, é fundamental perceber que Passo Fundo e região carecem de uma formação nessa perspectiva visto vir a formar sanitaristas vocacionados a fortalecer o SUS. É, de todas as alternativas de cursos, a que figura como número um para os movimentos sociais.
c. Junto com a Saúde Coletiva, aponta-se como importante construir a proposta de um curso voltado para formação dos agentes de saúde. Estes agentes ganham cada vez mais importância para a saúde pública, o que implicou inclusive em avanços no reconhecimento da sua profissão. Há um vazio formativo em todo o país. Um curso nessa direção, poderia contribuir não só com Passo Fundo e região, mas contribuir com a qualificação do SUS em todo País.
d. Considera-se ainda muito importante pensar num curso de Psicologia, mas que esteja vinculado com os desafios apontados acima e, particularmente, comprometido com a reforma psiquiátrica proposta pelo SUS. Esse curso poderia ter um papel muito importante em temas como saúde do trabalhador, drogadição, etc.
Apontou-se, ainda, elementos que devem ser levados em conta no caso de alguns cursos:
a. Enfermagem e Odontologia: os movimentos lembram que houve uma indicação do Conselho Nacional de Saúde no sentido de não se abrir cursos nestas áreas em função da grande quantidade já existente no país. Sugere-se levar em conta essa avaliação, inclusive a decisão nessa perspectiva.
b. Gestão em Saúde: para os movimentos sociais, o tema da gestão tem muita importância, mas e esta formação poderia estar vinculada ao curso de Saúde Coletiva – já que este poderia ter uma ênfase na gestão, entre outras, uma experiência que já está sendo desenvolvida em outras Universidades e que tem uma avaliação muito positiva [o inverso não é possível].
2) Para os Movimentos Sociais, o foco dos Cursos deveria considerar que:
a) Todos os currículos dos cursos devem ter em conta os princípios constitucionais e do SUS. Isso significa, em primeiro lugar, que a saúde é direito humano de todos/as, e dever do Estado. Além disso, um conceito de saúde que articule a promoção da saúde, a prevenção das doenças e a assistência à saúde da população. Isso implica uma formação crítica, que tenha uma visão mais integral e integradora de ser humano e o seu bem viver. Nessa perspectiva, as práticas integrativas de saúde, o uso de plantas medicinais e fitoterápicos articulados à valorização dos saberes tradicionais são cada vez mais importantes diante da necessidade de ampliar a qualidade de vida. Exige formar profissionais que sejam sujeitos capazes de dialogar com diversos saberes e de trabalhar em conjunto com as diversas profissões de forma interdisciplinar, além de capazes de dialogar e trabalhar com gestores da saúde, conselhos de saúde e movimentos sociais. Nesses processos, a escuta como prática dos profissionais se põe como elemento fundamental.
b) Todos os cursos devem articular sua prática pedagógica a partir de uma estratégia comum e capaz de abrir diálogos e práticas interdisciplinares e transdisciplinares. Essa perspectiva tende a ser mais efetiva dada a necessidade atual e futura de preparar profissionais que não se limitem a uma visão e ação unilateral, mas que tenham em conta uma realidade que exige respostas complexas e que articulem perspectivas complementares e sistemáticas, mas também dinâmicas e capazes de leituras das realidades e de interface com ela de maneira concreta, de modo a que os vários espaços de ação sejam lugares de prática e os vários sujeitos sociais sejam interlocutores dos processos de formação de modo que, junto com a “imersão”, sejam também desenvolvidas estratégias de “emersão” e de “inserção”.
c) A articulação entre a pesquisa, o ensino e a extensão, as três dimensões que caracterizam uma Universidade, é fundamental que se faça presente no Campus Passo Fundo desde o início de sua implantação e se efetive em profundo diálogo entre si e responda às reais necessidades da sociedade, particularmente do interesse público. Isso significa, por exemplo, que a imersão, prevista como estruturante na proposta do curso, tenha em conta as pautas e os sujeitos com os quais ela dialoga: se for com MST, é necessário que os docentes estabelecem um diálogo orgânico com o Movimento, com seus agentes, a fim de comprometer-se tanto com as necessidades da saúde quanto em potencializar a sua luta que é a construção da reforma agrária no país. Esta premissa deve valer para qualquer diálogo que for realizado. Fora disso, a imersão pode até vir a se constituir numa estratégia de deslegitimação dos movimentos e dos processos populares, fazendo com que sejam reforçados preconceitos e estereótipos em relação aos movimentos sociais,
Por fim, a sugestão prática de continuidade é que o diálogo entre os movimentos e a Universidade tenha continuidade e não seja apenas um recurso paliativo no processo de definição da expansão para a implantação de novos cursos. Sugere-se a criação de uma Comissão que possa realizar o diálogo não só com a UFFS, senão que, com todas as IES que têm cursos na área da saúde em Passo Fundo. Dentro da perspectiva do SUS, esse espaço poderia se constituir num lugar de diálogo capaz de construir uma estratégia loco-regional consistente e duradoura de formação dos profissionais da saúde. Entende-se que a UFFS, por ser pública, tem um papel intransferível para tal.
Passo Fundo, 20 de agosto de 2014.
ATÉ 04/09/2014, enviar manifestação de ADESÃO a esta Carta com nome da organização ou movimento para ceap@ceap-rs.org.br

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